quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Crítica a visão naturalista do Ballet Clássico.

No ballet clássico a dança propriamente dita só pode vir a ser através da técnica.
Luís XIV - "rei sol"

Para entender essa forma de ser do ballet é preciso recorrer a sua história. A primeira e fundamental tentativa de sistematização desse estilo aconteceu durante o reinado de Luís XIV, na França em 1661, a Académie Royale de La Danse, atual Ópera de Paris.

Sobre as características desse período, o século XVII: é neste momento que surge a filosofia moderna com Descartes, o homem está num período de negação dos conceitos medievais teocêntricos e se coloca no centro das questões, passando para um período antropocêntrico, chamado comumente de “Idade da Razão”. As concepções de mundo e de homem estão em profunda modificação.

Nesta época a visão de homem tem se tornado cada vez mais naturalista desde o surgimento da Renascença. O homem faz parte da natureza, é parte, matéria do todo, de um grande mecanismo orgânico. A metafísica é destruída pelo positivismo que procura suas respostas no mundo sensível que pode ser provado pela experiência. Surgem as ciências e com uma nova classe social também surge a moda (conceito de validade das coisas – tudo tem um prazo curto de validade).

Com isso conclui-se que numa negação desenfreada dos conceitos medievais tornou o homem materialista em excesso. Esse materialismo trouxe como conseqüência o distanciamento da preocupação com a essência do próprio homem e assim o distanciamento dos homens deles próprios.

Com o distanciamento do pensamento teocêntrico o homem se afasta de Deus, sendo ele próprio o seu “deus”. A igreja perde o seu total controle sobre as ações e o pensamento humano. Essa mudança de conceitos possibilita o surgimento de muitas formas de arte, dentre elas o ballet clássico. Arte que tem como instrumento o corpo, este que foi tão negado na Idade Média, onde jamais teria ascensão.

É possível fazer uma relação com esta forma de pensar da época (naturalista e positivista) e o ensino do ballet.

Começando pelo instrumento utilizado, o corpo. As formas que o corpo deve atingir. O aluno de ballet é apenas uma parte do todo. Os mestres (professores) não viam seus alunos como “pessoas”, eram apenas mais uma peça do seu quebra-cabeça. Uma peça que deveria ser adestrada para compor bem um quadro em movimento. O termo ‘adestrado’ nos remete a uma idéia de corpo sem razão que vem em contradição com a idéia de um homem racional, porém talvez seja essa a intenção desse tipo de ensino, a de anular o pensamento e condicionar as ações. Isso é evidente no “corpo de baile”, organismo formado por muitos bailarinos, que dançam juntos e impreterivelmente iguais.

Ballet Giselle


Em uma sala de ballet tradicional o silêncio é ensurdecedor, a única coisa que se ouve é a música e os gritos do professor. A música talvez seja o único elemento que dá alguma possibilidade de transformar aquela ‘ginástica’ em arte, já que os movimentos devem ser a materialização visual da música (mas este conceito só vai aparecer muito depois do surgimento da primeira escola de ballet).

Esta técnica surgida no período onde predominava a perspectiva naturalista não leva em conta os sentimentos dos executantes, e sim a exatidão da sua execução, quase que mecânica. Fica a pergunta: como isso se tornou arte? Que afetos e sensações um corpo desprovido de espírito poderia causar? O aprendizado do ballet é tão intenso que o bailarino abdica de sua vida particular e se dedica inteiramente a perfeição da execução dos movimentos.

Pensando no público alvo desses ballets do século XVII: eles não iam ao teatro pela arte, para terem sensações e afetos. O que os motivava a contemplar esse tipo de espetáculo é o status que esses eventos sociais e políticos proporcionavam. O ballet em quase toda sua história foi uma arte elitista, aristocrata.

Prosseguindo no tempo, temos a escola Russa. A escola Russa surge com o nascimento de uma nova classe social na França, a burguesia e a sua Revolução Francesa. Após a Revolução o ballet se tornou símbolo da monarquia, da aristocracia, e foi rejeitado pela nova classe em ascensão no poder. Sem público o ballet migrou para a Russia.

Importado dos franceses o ballet na Russia teve grande aceitação. Mas se formos olhar a forma como foram criados os primeiros bailarinos, percebe-se que o ballet foi uma ótima forma de condicionar o pensamento dos indivíduos. Isso é observado também em outras sociedade de regime político comunista como a China, onde o Imperador Mao recrutava crianças nas zonas rurais e mais pobres para fazerem parte da escola de ballet do governo; e Cuba. A maior parte dos alunos era de classe social baixa, os alunos se mudavam para a escola, estudando em tempo integral e sob os olhares de pessoas que iriam formar esses indivíduos de acordo com seus interesses. Para os indivíduos de classe social mais alta (a minoria da sociedade), não era interessante ter seus filhos criados integralmente pelo Estado.

O ensino do ballet se mostrou um grande aliado do Estado para moldar a opinião pública na forma que condizia com suas aspirações. Antes as idéias do homem eram manipuladas somente através da religião, agora ela também é manipulada através da arte e no caso dos estudantes de ballet, do seu próprio corpo.

A verdade é que os extremos parecem não ser o ideal. O equilíbrio não está em ter uma perspectiva essencialista ou naturalista, o homem não é só espírito ou só corpo, o homem vive uma dialética eterna entre seu corpo e seu espírito e os dois devem ser levados em conta principalmente no que diz respeito à educação.

O ensino do ballet atualmente tenta levar em conta essa dialética, porém a sua técnica foi elaborada em cima de uma concepção naturalista sendo assim muito complicado reinventar a forma de ensinar. Muitas alternativas têm sido pensadas, os ballets moderno e contemporâneo surgiram para se contraporem a essa estética formal do ballet clássico, mas alternativas têm sido pensadas para ensinar o ballet clássico sem o descaracterizar, o primeiro pensador a sistematizar em suas cartas como deveria ser o novo bailarino e o novo ballet foi Noverre (1727 – 1810), bailarino e coreógrafo francês que pensa um ballet mais expressivo, que veicule significados e emocione.
Noverre


O belo, segundo Noverre, exige razão (afinal ele também faz parte da época onde a perspectiva naturalista impera), mas a razão para ele era refutar a brutalidade da força física e uma expressão através de dificuldades puramente técnicas por sensibilidade do espírito, pela graça dos port de brás, lembrando que simplicidade não é mediocridade. Cada bailarino deve encontrar sua maneira de exteriorizar o que interiorizou durante sua vida, e não serem apenas reprodutores de maneirismos e acabarem por serem cópias de seus professores. 

3 comentários:

  1. Puxa, esse é um quadro bem pessimista de todo o balé do renascimento até o séc. XVII...: você está dizendo que ele ainda era puro adestramento e não arte! A crítica a essa noção em si é muito válida como você faz, mas, historicamente, como podemos dizer isso sobre o balé daquele tempo? Pessoas em eventos sociais elitizados por conta do status existiram sempre, inclusive hoje. Mas como dizer que era isso o que sustentava o balé, e não a sua arte, quando conhecemos artistas verdadeiramente dedicados a essa arte entre compositores (Gluck, Lully, Rameau) e dançarinos (Domenico da Piacenza, Pierre Beauchamp, Jean Coralli)? A própria Caterina de Medici, como a família, era uma grande promotora das artes e seu interesse pela dança rendeu frutos sinceros. O mesmo vale pro Louis XIV, que era encantado pela arte.

    Acho que pra você apresentar o seu último parágrafo, que é muito coerente, você fez uma abordagem histórica partindo de um dualismo muito radical, do estereótipo do renascimento rumo ao século XVII como período iluminista e "cartesiano" no sentido mais mecanicista e autômato, quando historicamente isso é apenas uma redução muito grosseira. Você menciona inclusive "positivismo" ao descrever esse período, mas positivista é essa visão da história como acúmulo de conhecimento que se possa chamar de "evolução" ou "involução" de acordo com a preferência, quando o que existe na verdade são sempre quebras de paradigmas que podem tornar cada fase de tempo muito particular (à la Thomas Kuhn).

    A organização da dança é uma das conquistas mais significativas do ser humano sobre o impulso essencial de dançar, não é preciso fazer esse contraste histórico violento pra mostrar a beleza do desenvolvimento da dança pelos séculos. A crítica a isso que você identifica como visão naturalista da dança deve ser feita simplesmente pela maturidade de quem vive a arte da dança e sabe que ela não cabe apenas em um movimento programado do corpo, mas está além porque é uma linguagem que expressa e cria significados novos.

    Abraços!

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  2. Olá Leonardo!

    Essa esse texto é uma crítica a visão naturalista que se pode ter do ballet e das artes em geral. Não se pode negar que este período estava envolvido nesta perspectiva de homem e de mundo. Vivo a dança desde que me entendo por gente, ela faz parte da minha identidade. Sou bailarina, professora e coreógrafa e sei o poder que tenho como professora e coreógrafa de implantar conceitos, idéias e regular ações dos meus alunos e bailarinos. Claro que uso essa influencia de uma outra forma, fazendo com que eles aprendam a ter autonomia de pensamento. Porém, com a disciplina exigida e condicionamento de comportamento, não seria difícil fazer com que pensassem e agissem conforme as minhas idéias.

    Reconheço os esforços dos teóricos e práticos da época! E quanto a hoje existir a procura da arte pelo status e poder político, com certeza!!!! Muita coisa não mudou!!!! É só olhar com um pouco mais de atenção!!!

    Muito obrigada pelo seu comentário!!! Grande abraço.

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  3. Marcela, parabéns pelo artigo, tudo muito claro, dinâmico e objetivo. Gostaria de saber se você possui mais textos relacionados ao tema (que por sinal é bem escasso, já que esse tipo de estudo não é bem representado em nosso país).

    Um abraço

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